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sábado, 18 de abril de 2015

Coluna no ON: Direitos iguais

Somos todas Verônica ? 

Nesta semana, a travesti Verônica Bolina tornou-se notícia.
De acordo com relatos da imprensa, gestores públicos e de pessoas ligadas à Verônica, a mesma havia se envolvido em uma discussão com outras travestis, resultando em mútuas agressões, além de graves ferimentos em uma vizinha. O fato que suscitou o interesse público, no entanto, não foi mais uma briga de vizinhos, tão insignificante nos dias em que a violência assombra pela sua grandiosa dimensão e onipresença. Duas imagens justificam a atenção para o caso: por um lado, Verônica com o rosto deformado, seguida da exposição do seu corpo desnudo; do outro, a orelha de um agente carcerário arrancada por uma mordida da travesti.
De imediato, as imagens de Verônica causaram comoção e mobilizaram militantes sociais e gestores públicos. A suspeita era de que a mesma havia sido submetida à tortura. De forma mais apressada, a versão oficial apresentada pelos órgãos públicos, sustentada por áudios da própria travesti, apontam a inexistência de quaisquer maus tratos, bem como seu reconhecimento de culpa pelos atos praticados e, mais ainda, sofridos.
A agressão não despertaria atenção, não fosse o fato de que no centro dos acontecimentos encontra-se uma travesti. Ainda que os seus gestos constituam crimes, que devem ser punidos adequadamente, não é compreensível que o Estado destine tratamento desigual ou inadequado à Verônica!
Importa afirmar que qualquer conclusão sem as devidas averiguações, tendentes a afastar quaisquer hipóteses de violação de direitos (mesmo a prática de tortura), por si só, já significa tratamento inadequado. Antes de concluir pela inexistência de maus tratos ou outros tratamentos degradantes, é preciso, por exemplo, que testemunhas sejam ouvidas, para elucidar se o grau de violência resultante da briga com outras travestis foi suficiente para desfigurar o rosto de Verônica.
De igual modo, é preciso apurar quem são os responsáveis pela indevida divulgação das fotos em que Verônica a
parece exposta desnuda, desrespeitando a sua intimidade. A violação da sua imagem, permitindo que esta sirva de deboche e escracho nacional, constitui afronta à sua dignidade e desrespeita direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal.

Segundo o site G1, a travesti vai responder pelas condutas criminosas de evasão mediante violência contra a pessoa, resistência e lesão corporal grave. 
Neste particular, cabe especial análise: há elementos que indicam o cometimento dos dois primeiros crimes, no entanto, soa absurdo tipificar a agressão ao agente carcerário como lesão corporal grave.
Para o Direito Penal, a lesão corporal de natureza grave é aquela que resulta na incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias, perigo
de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função ou, ainda, aceleração de parto (Art. 129, § 1º, Código Penal).
É pressuposto à aplicabilidade da norma penal a sua máxima objetividade. Assim, para que se constitua uma lesão corporal grave, é preciso que o ato criminoso resulte em uma situação que, de fato, coloque a vítima em situação de pleno risco, em que a morte é uma possibilidade real. Ainda, que os efeitos impeçam a continuação da vida profissional plenamente. Ora, em pese a gravidade de ter a orelha arrancada por uma mordida, as situações apresentadas pela legislação penal não se inserem no Caso Verônica.


Quando um professor de filosofia foi barbaramente agredido por cinco skinheads, em São Paulo, a autoridade policial competente entendeu tratar-se delesão corporal leve. Tal feito impediu a imediata prisão dos agressores, uma vez que este tipo de crime, de natureza leve, não autoriza o encarceramento dos responsáveis. As imagens das agressões sofridas dizem muito a respeito da dimensão da gravidade que as lesões provocaram no professor. Por que, no caso Verônica, outra interpretação da lei deve prevalecer de modo a atribuir-lhe maior pena?
A correta definição da conduta praticada por Verônica é importante para estabelecer que tipo de sanção será aplicada antes de seu julgamento, o que poderá resultar em prisão preventiva ou não. Também, para orientar a devida aplicação da pena, uma vez que o juiz poderá substituir a sentença de detenção por multa.
Vale destacar que a ideia de Estado Laico deve igualmente prevalecer na apuração de crimes praticados por cidadãos LGBT. Mesmo que Verônica tenha admitido que estivesse “possuída”, razão que em seu entendimento justifica as agressões cometidas e sofridas, é dever dos órgãos de segurança pública afastar elementos estranhos à razão pública, apurando as reais motivações dos crimes para a devida punição, tanto para a travesti, quanto para os agentes do Estado que tenham cometidos abusos. Do contrário, a mera constatação de fenômenos sobrenaturais result
ará na aplicação de punição apenas para Verônica e isenção de culpa para os que eventualmente tenham exacerbado no seu dever de apenas conter e imobilizar pessoas que estejam cometendo crimes.
Neste particular, cabe uma ressalta importante: depoimentos de Verônica não devem servir como única prova para excluir quaisquer responsabilidades de agentes que eventualmente tenham cometido abuso de poder. É uníssono o entendimento jurisprudencial que assegura que a prova de confissão não exclui o dever de completa apuração de crimes. As imagens do seu rosto completamente desfigurado justificam suspeitas quanto à natureza de suas “confissões”.
Ante os fatos descritos, é preciso atentar-se a duas situações.
A primeira delas diz respeito ao acompanhamento dos procedimentos que estão sendo adotados para apurar os fatos criminosos. Trata-se da necessidade de acompanhamento externo do inquérito policial, por advogados ou defensores públicos, de modo a garantir a ampla defesa e assegurar o respeito aos direitos fundamentais de Verônica, atentando-se ao pleno respeito à sua identidade de gênero.
Em segundo lugar, é preciso que as regras para travestis e transexuais em situação de cárcere sejam fielmente cumpridas. O Estado de São Paulo adotou a Resolução SAP nº 11, de 30 de janeiro de 2014, que estabelece normas de tratamento para travestis e transexuais no âmbito do sistema carcerário. Não é cabível que órgãos deste Governo descumpram as regras por ele estabelecidas! Deste modo, a fim de evitar que a identidade de gênero de Verônica seja tomada para fragilizá-la, é urgente que os direitos assegurados na referida Resolução sejam cumpridos, em especial a escolha da unidade prisional que pretende ficar, caso seja imposta prisão preventiva, escolha do tratamento nominal (nome social), preservação das características femininas (por exemplo, a proibição do corte de cabelo) e acompanhamento médico condizente com a sua condição de travesti.
Não se trata de buscar privilégio à Verônica, senão de assegurar o tratamento condizente com a sua identidade de gênero, fator estimulante da homofobia/transfobia que vulnerabiliza a sua condição de cidadã, bem como assegurar a justa aplicação das leis, que devem ser igualmente impostas a todas as pessoas.
Em que pese a credibilidade de gestores públicos, a cultura da violência, institucionalizada nas hastes do Estado, ultrapassa as boas intenções. Via de regra, a violação de direitos praticada pelos agentes públicos não se resume à prática de tortura; outras formas de tratamentos degradantes ferem a dignidade das pessoas e devem merecer total repúdio e corajosa investigação. Somente a adequada apuração pode, efetivamente, afastar oportunistas de plantão, ávidos por reforçar discursos contrários à dignidade de travestis e transexuais ou insaciáveis por 15 minutos de fama.
O caso Verônica pode tornar-se emblemático. Seja por nos ensinar a tratar com menos ufanismo e oportunismos a violência homofóbica, seja por contribuir para a construção de outra cultura de tratamento à população LGBT pelos órgãos de segurança pública e de encarceramento.


Dimitri Sales se formou em Direito em Ilhéus, na Bahia. É advogado, mestre e doutorando em Direito. Seu foco sempre foi defender os direitos humanos e, desde 2006, se dedica às causas LGBT. 
Atualmente ele escreve uma coluna para o sete IG, intitulada de: “Direitos iguais”. As publicações de Dimitri Sales, também serão reproduzidas aqui no ON, com direitos adquiridos.  

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